quarta-feira, maio 03, 2006

Há uns anos, um senhor chamado Paulo Gil, grande jazzista, dizia já não me lembro a respeito de que músico, que "fala, fala mas não diz nada". Não era gozo como o sketch dos fedorentos mas uma maneira de descrever um tipo de solista virtuoso que debita rajadas de notas sem nos fazer sentir grande coisa, ou mesmo nada. Miles Davis é o oposto. Chega a ser descrito por outro grande jazzman (escapa-me o nome) como "um mau trompetista mas um excelente solista". Não o oiço assim mas percebo o que pode levar a que se o diga e, talvez por esta razão, me fascina tanto o mestre do cool.

Perdi a virgindade Kind of Bluesca já com versão remasterizada, direito a selo de "jazz materpiece" na capa e sabendo bem de antemão que não era um disco qualquer. Aos trinta segundos de So What, depois do ínicio sem tempo certo, entra aquela linha de contra-baixo arrepiante, alternada com o piano que só podia ser tocado pelo Bill Evans. Depois as marcações dos três sopros. Já estava convertido. Um minuto a seguir e a ida ao prato (com corrente) a marcar a entrada do solo de Miles dá-me assim como que uma marretada suave e uma vontade de dizer "foda-se que bom!" Quase sexual.

Já ouvi o disco todo e voltei a ouvir tantas vezes que seria giro poder ter uma estatística detalhada. É a segunda cópia (comprada entenda-se)a que oiço enquanto escrevo isto. Já "gastei" uma nos últimos dez anos. O disco passou até o "teste do restaurante" – a minha mãe tem um estabelecimento onde passa jazz e hesitei muito em levar um kind of blue para lá. Noites atrás de noites a tocar enquanto servia à mesa. Resistiu. Continuo a ouvi-lo e a passar-me com alguns pormenores. Consigo cantar boa parte dos solos integralmente. Mais os do Miles. Os do Coltrane e do Cannonball é "muita fruta".

Bem, podia ficar a dissertar sobre o disco, quem o tocou, etc, mas para quem estiver interessado em saber mais que leia o livro que me deu gana para escrever este post.
Kind of Blue: the making of the Miles Davis masterpiece (Da Capo Press 2000- $16).

Talvez mais passível de ser totalmente apreciado por músicos é de qualquer modo uma leitura que dá bastante pica a quem goste do assunto. Além de muito bem escrito, consegue ser relativamente imparcial na análise que faz – não é uma adoração à "divindade" Miles Davis mas sim um bom documento histórico sobre uma obra de arte que se tornou um icon. O livro é bem conseguido.
Começa pelo percurso dos vários músicos até se juntarem para a gravação, a qual é documentada em detalhe incluindo transcrição das conversas gravadas nas masters. A influência que teve e continua a ter é discutida no final por uma série de gente de várias estéticas musicais. Vale mesmo a pena. Compra-se no Amazon em 2ªmão por tuta e meia e compensa.